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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A MORTE VEM DE CARONA - Maicon e Maxi

A fatídica noite em que a única certeza da vida chegou sem avisar

O pé corre do acelerador ao freio em menos de alguns segundos. Uma forte luz ilumina seu rosto. O pneu queima no asfalto. Não há tempo de sentir medo. Ali seus olhos viram uma última imagem e seu corpo sentiu o impacto. Ela chega sem que seja vista. Ela é inesperada. O choque do Gol contra o corpo de Amanda foi fatal.

A morte da travesti Amanda começou antes. Estranhamente, a morte começou em uma festa. Num sábado frio e chuvoso, Flavio Nascimento Serqueira e sua família decidiram ir a um arraiá. Mal sabia Amanda que dessa festa julina sairia alguém que lhe traria a morte. Mal sabia Flávio, que na volta para casa levaria a morte, de carona. Não só a morte de Amanda, mas a própria.

5h30 da tarde. Esse era o horário que Amanda costumava sair de casa para trabalhar. O local de seu trabalho? As ruas. Há três anos a jovem vendia o corpo para sustentar a família que morava em um barraco doado pela igreja. Desde pequena viveu na miséria, contando com a ajuda de vizinhos. Aos 16 anos a vida balançou: Se assumiu definitivamente homossexual e perdeu a mãe que morreu vítima de um infarto.

Doce e bem educada, como uma mulher, Amanda mostrava-se muito macho quando o assunto era defender a sua sexualidade. Foi muito homem também, quando perdeu o pai para a cirrose, dez dias antes de a morte lhe buscar.


Mês de julho, arraiás animados por toda a cidade. Flávio, a mulher e a filha se divertiam na festa com os familiares e amigos. Conversa vai, bebida vem, vem e vem. Já estava tarde, mas eles queriam se divertir mais. Como desejavam continuar bebendo, decidiram terminar a noitada na casa de um cunhado. Lá poderiam beber e se divertir sem perigo. Talvez se tivessem chegado lá...

A Avenida Brasil liga a cidade de ponta-a-ponta. Em toda a sua extensão há inúmeros locais de prostituição. O de Amanda nesta noite é na esquina da rua Erechim com a Avenida Brasil. Quase 3 horas da manhã. A travesti continua a espera de clientes na fria madrugada de Cascavel. O All Star de cadarço rosa suporta o peso daquele corpo já cansado, que precisava estar ali.

O Gol GTS leva Flávio, a mulher, a filha e a caroneira. Na agitação da noite, o cinto de segurança desaparece. O carro. O pé no acelerador. E ela. Ela que não foi convidada, mas vai de carona.

Às 3h30 da manhã, o brilho do sol ainda está longe de aparecer. Amanda continua à espera de trabalho. Naquela esquina, naquela madrugada de inverno, com ventos frios e tempo ruim. Ali Amanda passou a sua última noite.

Seguindo pela Avenida Brasil, no centro de Cascavel, Flávio, a família e a caroneira seguem para o seu destino. Destino esse, que mudaria totalmente após aquela noite. No carro da frente, Jair da Silva Rosa dirigia na mesma direção. Os dois veículos, o mesmo sentido, mas destinos diferentes.

De repente, como se fosse programado, o pé de Flávio pisa forte no acelerador, e o Pálio de José da Silva freia bruscamente. Ali se iniciava. Ali a carona de Flávio começava o seu trabalho. Na esperança de parar o carro a tempo, Flávio faz a última tentativa. Freou, freou forte. Freou pela vida. E rodou na pista.

O sol não aparece para Amanda. O que brilha agora em sua direção são os faróis do Gol KBI 0497. Ao bater o veículo na traseira do Pálio, Flávio acertou a travesti que estava na calçada. Que estava trabalhando. Que queria botar comida em casa. Que estava naquele ponto, naquele lugar, na hora errada.

Nada mais fazia sentido. Amanda estava morta. Morreu na hora. Seu corpo foi parar dentro de uma imobiliária. Sua cabeça foi esmagada e seu cérebro espalhado pelo chão. Amanda morreu, talvez sem ter visto a morte chegar.

“Salva o anjo”, gritava Jair da Silva. Ele, que com a batida entrou em baixo das tábuas de uma construção próxima, com sorte, saiu ileso do acidente. A filha de Flávio, de um ano e cinco meses foi levada as pressas para o hospital assim como a mãe. A esposa de Flávio, com traumatismo craniano foi encaminhada ao Hospital Universitário com risco de morte. 

Flávio não teve a mesma sorte. A caroneira não levou apenas Amanda. O jovem de 21 anos não resistiu. A batida foi exatamente do lado esquerdo do carro. Seu rosto foi desfigurado. Uma mulher sem marido, uma filha sem pai. A caroneira o levou, da pior maneira possível. Mas foi Flávio quem decidiu trazê-la. Quando bebeu antes de dirigir, quando esqueceu o cinto de segurança, Flávio a aceitou em seu carro. A morte veio de carona e fez o seu trabalho.



As sobras daquela madrugada

Um mês após o acidente, o que se tem são acusações e poucas informações

Você ligou para o meu marido? Uma voz dura e cheia de curiosidade indagou.

Cinco minutos antes, a produção da reportagem havia ligado para Jair da Silva Rosa, o motorista do Pálio envolvido no acidente. Ele não quis falar sobre o assunto, mas a sua mulher, curiosa em saber o real objetivo do contato retornou a ligação. Ao explicar a situação, o repórter é surpreendido com uma ligeira resposta. “Ele não vai falar nada”

Um mês depois de tudo o que aconteceu, a esposa de Jair que, por sinal, é proprietária do Pálio, explica que ele não está abalado, mas não quer falar, porque sente medo. Medo de atrapalhar o processo judicial que está sendo movido contra a família de Flavio Serqueira.

Na polícia civil a situação é a mesma. Três tentativas em vão. Na quarta e última, a frase do escrivão da Polícia Civil de Cascavel, Armando Provim, foi: “O inquérito já está no Fórum”. Depois, explicou-se rapidamente dizendo não poder falar sobre o caso e nem sobre a suspeita de que Flávio estava fazendo “racha”.

A filha e a mulher de Flávio já passam bem, se recuperando em casa. Agora, além de terem que lidar com a saudade, terão que enfrentar a justiça.

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