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terça-feira, 19 de novembro de 2013

Atleta de ouro aos 86 - Marcelo Gartner




A lição de vida da senhora que largou a costura em casa para “costurar as pistas” de atletismo




Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar no sonho que se tem. Ou que seus planos nunca vão dar certo. Ou que você nunca vai ser alguém. Dessa vez o trecho da música de Renato Russo calha muito bem à senhora de estatura baixa, cabelos brancos, visão dificultada e hipertensa. Junte tudo isso a mais um agravante: contrariada pela família na sua ideia de corrida matinal e da participação em campeonatos. Eu vou lhe explicar porquê.


Foi no receituário do médico que se deu início a essa história cativante de superação do que muitos imaginam existir limites quando se chega aos 86 anos de idade. Exemplo da prática saudável de exercícios aliada à força de vontade traz consigo Vera Venske de Lima. A invejável saúde, disposição, fôlego e perseverança obtiveram resultados no mês passado, em Porto Alegre, durante o Campeonato Mundial de Atletismo, categoria Master. Dividiam espaço no peito de Dona Vera, três medalhas de ouro e a emoção indescritível de saber que o Hino Nacional Brasileiro era executado pra ela. O que chama a atenção é que esta foi apenas a segunda competição oficial que ela participara, antes somente o Sul-Brasileiro, ano passado, o qual lhe conferiu duas medalhas de ouro.


Mas, vamos saber como tudo começou.


Já era rotina: nos exames periódicos que Dona Vera realizava, todos apontavam o colesterol alto. Na receita do médico? Uma hora de caminhada todos os dias, “Comecei com 67 anos com a ordem médica. Antes, nem pensava em caminhar, passava o dia inteiro só costurando em casa.” E assim, a rotina começou a mudar: “Peguei como se fosse um trabalho, chegou aquela hora, é sagrado. Só mesmo não saía de casa quando tava chovendo”. Dona Vera conta que o hábito de correr começou ao ver outras pessoas correndo: “Via os outros passarem por mim, por que eu não posso? Iniciei correndo 100 metros, caminhando outros 200, quando vi tava correndo o lago inteiro”. Tudo sem o conhecimento da família, que imaginava que as saídas do início da manhã não passavam de simples caminhadas em torno do lago.


Até o dia em que a filha de Dona Vera, Eva Tonello, falou, indignada, no tom de cobrar explicações à mãe: “Me disseram que te encontraram correndo!?”. Aí que incentivada pelo neto, realizou exames cardiológicos para que assim fosse aprovada aquela decisão que à família lhe parecia incoerente. “Ah, mas fiz todos os exames, demorei acho que quatro meses só fazendo exames. Hoje, meu neto Mateus e minha filha me apoiam muito. Até mesmo, foram me levar agora há pouco dar entrevista lá onde tinha que ir”. O ‘lugar onde tinha que ir’ que se referia Dona Vera, era uma entrevista ao Globo Esporte Paraná. O fato de esbanjar saúde aos 86 anos chamou a atenção ao vivo em rede estadual.


Quando espantado com tamanha disposição, a senhora de fala em tom baixo e de voz agradável, trazendo consigo o sotaque gaúcho, fala com satisfação exprimindo um movimento tímido de risos nos lábios afilados: “Eu já fiz uma corrida de oito quilômetros aí no lago. Foi até a noite. A dificuldade maior é porque eu enxergo pouco. Tenho retina envelhecida. Não tem mais nada pra fazer. Só enxergo a imagem das pessoas”.


Dona Vera é sinônimo de bem-estar e determinação com uma pitada de senso de humor. Relatou-me com felicidade, que no Mundial havia uma alemã, atual campeã da modalidade, a qual “ficou bem doída quando eu ganhei dela, não quis nem subir no pódio. Aí, na outra corrida, de 1.500, também ganhei dela, mas daí ela tava conformada, e ela vieram me abraçar e tudo...”, enquanto abre aquele sorriso gostoso de avó querida.


Perguntei se tinha noção do exemplo que ela é não só para pessoas da terceira idade como também para os jovens. E a resposta, entusiasmada, foi a seguinte: “Ah né, pros jovens. Que os jovens não gostam muito de se movimentar. Que façam exercícios, por que é muito bom. Eu não sinto nenhuma dor. Mesmo depois das corridas. Lá no Mundial, terminava a corrida, eu ficava bem que parecia que nem tinha corrido”.


Com entusiasmo, o que lhe é peculiar, quis deixar uma mensagem: “A pessoa que se dedica a correr não pensa em drogas, essas coisas, nem tem tempo pra isso, porque tem que se dedicar muito. E pros de mais idade também, porque só ficam aí sentados vendo televisão. E pra quem não quer correr, pode caminhar.”


Me despedindo daquele momento de exemplo maior de paixão pela vida, desejei-a boa sorte na ‘Eco Cascavel’, corrida de cinco quilômetros sob o forte calor de um sábado a tarde já com uma certeza: a qual Dona Vera seria a estrela maior.


Antes de encerrar a transcrição dessa matéria, lembrei que em certo momento da nossa conversa, a senhora que chegou a viver a Revolução liderada por seu conterrâneo Getúlio Vargas, lá em 1930, esqueceu-se da modalidade em que foi campeã. Ela apertou os olhos e franziu-lhe a testa. “É... nos mil e..., 300, 500 metros...”. Nesse momento, as curtas rugas evidenciaram em seu pequeno rosto, o qual lembra aquela figura de avó atenciosa e conversadeira.


Enfim, 800? 1500? 5000 metros? Bom, isso não importa, perto de outro título: um dos maiores exemplos de vida ativa e superação, ainda que, num patamar que muitos o veem como idade para se render ao descanso em uma cama ou à “prisão” dentro de uma casa, alimentada pelo medo à violência porta afora e à fragilidade num passear sozinho pelas ruas do bairro ou em simples afazeres domésticos.


Rotina e alimentação


O despertar se dá às seis horas da manhã, para então fazer alongamento e musculação no Sesc em três dias da semana. Já nas terças, quintas e sábados é possível ver Dona Vera correndo os 4 mil metros do entorno do Lago Municipal. Enquanto o Sol vai nascendo, Dona Vera come uma fruta em casa e parte pra caminhada. Alimentação que também impressiona em Dona Vera pela pouca quantidade. Quando chega dos exercícios, toma o indispensável chimarrão e depois come mamão com granola e iogurte. Mais tarde, um chá com bolacha. “No almoço, carne eu como muito pouco, salada e pouco arroz. Um pouquinho de cada coisa assim”, enquanto que com a pequena mão, bastante marcada pela idade, gesticula em movimentos circulares imitando a pequena quantidade de comida. E por fim, à noite, apenas café com uma fatia de pão com queijo. De maneira convicta, ela fala que se sente muito bem assim e confessa que gosta muito de frituras, no entanto, é muito raro entrar em sua dieta.


Dona Vera vai pra França?


Indagada sobre a vontade de continuar competindo. Ela me contou que foi convidada a participar do próximo Mundial, na França, daqui dois anos, quando estará com 88 anos. “Se a saúde permitir e conseguir patrocinadores, porque tudo custeado pela gente assim não é fácil”. Pra quem quiser apoiar Dona Vera o telefone de contato é: (45) 3223 3016.

Texto de Marcelo Machado

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