A lição de vida da senhora que largou a
costura em casa para “costurar as pistas” de atletismo
Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar no sonho
que se tem. Ou que seus planos nunca vão dar certo. Ou que você nunca vai ser
alguém. Dessa vez o trecho da música de Renato Russo calha muito bem à senhora
de estatura baixa, cabelos brancos, visão dificultada e hipertensa. Junte tudo
isso a mais um agravante: contrariada pela família na sua ideia de corrida
matinal e da participação em campeonatos. Eu vou lhe explicar porquê.
Foi no receituário do médico que se deu início a essa história
cativante de superação do que muitos imaginam existir limites quando se chega
aos 86 anos de idade. Exemplo da prática saudável de exercícios aliada à força
de vontade traz consigo Vera Venske de Lima. A invejável saúde, disposição,
fôlego e perseverança obtiveram resultados no mês passado, em Porto Alegre,
durante o Campeonato Mundial de Atletismo, categoria Master. Dividiam espaço no
peito de Dona Vera, três medalhas de ouro e a emoção indescritível de saber que
o Hino Nacional Brasileiro era executado pra ela. O que chama a atenção é que
esta foi apenas a segunda competição oficial que ela participara, antes somente
o Sul-Brasileiro, ano passado, o qual lhe conferiu duas medalhas de ouro.
Mas, vamos saber como tudo começou.
Já era rotina: nos exames periódicos que Dona Vera realizava,
todos apontavam o colesterol alto. Na receita do médico? Uma hora de caminhada
todos os dias, “Comecei com 67 anos com a ordem médica. Antes, nem pensava em
caminhar, passava o dia inteiro só costurando em casa.” E assim, a rotina
começou a mudar: “Peguei como se fosse um trabalho, chegou aquela hora, é
sagrado. Só mesmo não saía de casa quando tava chovendo”. Dona Vera conta que o
hábito de correr começou ao ver outras pessoas correndo: “Via os outros
passarem por mim, por que eu não posso? Iniciei correndo 100 metros, caminhando
outros 200, quando vi tava correndo o lago inteiro”. Tudo sem o conhecimento da
família, que imaginava que as saídas do início da manhã não passavam de simples
caminhadas em torno do lago.
Até o dia em que a filha de Dona Vera, Eva Tonello, falou,
indignada, no tom de cobrar explicações à mãe: “Me disseram que te encontraram
correndo!?”. Aí que incentivada pelo neto, realizou exames cardiológicos para
que assim fosse aprovada aquela decisão que à família lhe parecia incoerente.
“Ah, mas fiz todos os exames, demorei acho que quatro meses só fazendo exames.
Hoje, meu neto Mateus e minha filha me apoiam muito. Até mesmo, foram me levar
agora há pouco dar entrevista lá onde tinha que ir”. O ‘lugar onde tinha que
ir’ que se referia Dona Vera, era uma entrevista ao Globo Esporte Paraná. O
fato de esbanjar saúde aos 86 anos chamou a atenção ao vivo em rede estadual.
Quando espantado com tamanha disposição, a senhora de fala em tom
baixo e de voz agradável, trazendo consigo o sotaque gaúcho, fala com satisfação
exprimindo um movimento tímido de risos nos lábios afilados: “Eu já fiz uma
corrida de oito quilômetros aí no lago. Foi até a noite. A dificuldade maior é
porque eu enxergo pouco. Tenho retina envelhecida. Não tem mais nada pra fazer.
Só enxergo a imagem das pessoas”.
Dona Vera é sinônimo de bem-estar e determinação com uma pitada de
senso de humor. Relatou-me com felicidade, que no Mundial havia uma alemã,
atual campeã da modalidade, a qual “ficou bem doída quando eu ganhei dela, não
quis nem subir no pódio. Aí, na outra corrida, de 1.500, também ganhei dela,
mas daí ela tava conformada, e ela vieram me abraçar e tudo...”, enquanto abre
aquele sorriso gostoso de avó querida.
Perguntei se tinha noção do exemplo que ela é não só para pessoas
da terceira idade como também para os jovens. E a resposta, entusiasmada, foi a
seguinte: “Ah né, pros jovens. Que os jovens não gostam muito de se movimentar.
Que façam exercícios, por que é muito bom. Eu não sinto nenhuma dor. Mesmo
depois das corridas. Lá no Mundial, terminava a corrida, eu ficava bem que parecia
que nem tinha corrido”.
Com entusiasmo, o que lhe é peculiar, quis deixar uma mensagem: “A
pessoa que se dedica a correr não pensa em drogas, essas coisas, nem tem tempo
pra isso, porque tem que se dedicar muito. E pros de mais idade também, porque
só ficam aí sentados vendo televisão. E pra quem não quer correr, pode
caminhar.”
Me despedindo daquele momento de exemplo maior de paixão pela
vida, desejei-a boa sorte na ‘Eco Cascavel’, corrida de cinco quilômetros sob o
forte calor de um sábado a tarde já com uma certeza: a qual Dona Vera seria a
estrela maior.
Antes de encerrar a transcrição dessa matéria, lembrei que em
certo momento da nossa conversa, a senhora que chegou a viver a Revolução
liderada por seu conterrâneo Getúlio Vargas, lá em 1930, esqueceu-se da
modalidade em que foi campeã. Ela apertou os olhos e franziu-lhe a testa. “É...
nos mil e..., 300, 500 metros...”. Nesse momento, as curtas rugas evidenciaram
em seu pequeno rosto, o qual lembra aquela figura de avó atenciosa e
conversadeira.
Enfim, 800? 1500? 5000 metros? Bom, isso não importa, perto de
outro título: um dos maiores exemplos de vida ativa e superação, ainda que, num
patamar que muitos o veem como idade para se render ao descanso em uma cama ou
à “prisão” dentro de uma casa, alimentada pelo medo à violência porta afora e à
fragilidade num passear sozinho pelas ruas do bairro ou em simples afazeres
domésticos.
Rotina e alimentação
O despertar se dá às seis horas da manhã, para então fazer
alongamento e musculação no Sesc em três dias da semana. Já nas terças, quintas
e sábados é possível ver Dona Vera correndo os 4 mil metros do entorno do Lago
Municipal. Enquanto o Sol vai nascendo, Dona Vera come uma fruta em casa e
parte pra caminhada. Alimentação que também impressiona em Dona Vera pela pouca
quantidade. Quando chega dos exercícios, toma o indispensável chimarrão e
depois come mamão com granola e iogurte. Mais tarde, um chá com bolacha. “No
almoço, carne eu como muito pouco, salada e pouco arroz. Um pouquinho de cada
coisa assim”, enquanto que com a pequena mão, bastante marcada pela idade,
gesticula em movimentos circulares imitando a pequena quantidade de comida. E
por fim, à noite, apenas café com uma fatia de pão com queijo. De maneira
convicta, ela fala que se sente muito bem assim e confessa que gosta muito de
frituras, no entanto, é muito raro entrar em sua dieta.
Dona Vera vai pra França?
Indagada sobre a vontade de continuar competindo. Ela me contou
que foi convidada a participar do próximo Mundial, na França, daqui dois anos,
quando estará com 88 anos. “Se a saúde permitir e conseguir patrocinadores,
porque tudo custeado pela gente assim não é fácil”. Pra quem quiser apoiar Dona
Vera o telefone de contato é: (45) 3223 3016.
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Texto de Marcelo Machado |
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